Por: Porvir
Por causa da pandemia de Covid-19, neste início de ano letivo, os professores estão diante do desafio de implementar – a despeito de terem ou não formação e experiência – estratégias para atender aos estudantes que estão no ensino remoto e àqueles que estão frequentando as aulas presenciais.
Os desafios perpassam todas as etapas, mas se acentuam nos anos iniciais do ensino fundamental. Uma preocupação comum entre educadores e famílias é evitar a exposição excessiva das crianças pequenas às telas. Outro desafio é dar conta de processos típicos da etapa, como a alfabetização. Diante desse cenário, surgem as perguntas: a abordagem híbrida pode ser adotada nos anos iniciais do fundamental? Que habilidades os professores precisam desenvolver para adotá-la?
O ponto de partida, assinala Fernando Trevisani, professor e consultor em metodologias ativas, é esclarecer o conceito de ensino híbrido. Ao contrário do que está circulando na sociedade, o ensino híbrido não é a oferta de aulas e atividades presenciais e online. Também não é a transmissão ao vivo de aulas realizadas na escola.
“Tem tido muita confusão, até mesmo na mídia, sobre o que é ensino híbrido. O ensino híbrido é composto por modelos de aula que utilizam as tecnologias digitais para o professor coletar dados, analisá-los e promover a personalização do ensino com os alunos, preferencialmente em aulas presenciais”, define Trevisani, que também é um dos coordenadores do Grupo de Grupo de Experimentações em Ensino Híbrido e doutorando Metodologias Ativas e Educação Matemática na Universidade Estadual Paulista (Unesp).
Ou seja, o ensino híbrido não se resume a uma metodologia, pautada por um método pré-estabelecido. Como afirma Flávia Moura, professora de matemática na rede municipal do Rio de Janeiro, a essência do ensino híbrido é olhar o aluno como um indivíduo com suas particularidades e necessidades.
O lugar da tecnologia
A tecnologia faz parte da abordagem híbrida, mas não necessariamente para os estudantes realizarem atividades. A tecnologia, explica Trevisani, deve ser usada com foco na personalização do ensino para os alunos e para os professores coletarem informações e acompanharem a aprendizagem.
“O uso de recursos digitais independe do tempo que a criança fica exposta às telas, mas depende principalmente do modelo de aula que o professor consegue elaborar, incorporando essas ferramentas para personalizar o ensino”, detalha Trevisani. Ou nas palavras de Flávia: “quando a gente fala em ensino híbrido, a gente não está falando necessariamente em utilizar a tela. A gente recorre à tela como um recurso. O foco é ficar mais próximo do aluno”.
Por exemplo, um vídeo pode ser usado como uma estratégia de personalização do ensino, pois o aluno pode acessá-lo várias vezes, ir e voltar, fazer um registro etc.. Outro exemplo: se o estudante está fazendo uma questão de matemática numa plataforma e erra, ela pode ser automaticamente direcionado para exercícios específicos. Já o Google Form pode ser um aliado do professor, pois gera dados que podem ser usados como diagnóstico ou avaliação.
Então, antes de tudo, o professor precisa compreender a função da tecnologia digital no ensino híbrido nos momentos online e nos momentos offline. Segundo Flávia, não adianta utilizar a ferramenta tecnológica e colocar vídeo para o aluno assistir. “Aulas sincronizadas, por exemplo, em que o aluno está em casa, assistindo a uma aula expositiva, que está acontecendo na escola é apenas um jeito de transferir para casa aquelas aulas tradicionais. Não tem nada a ver com o ensino híbrido”, complementa ela. Afinal, o ensino híbrido foi pensado para o contexto das aulas presenciais.
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O híbrido nos anos iniciais
Algumas das características do ensino híbrido se alinham bem ao ensino fundamental 1, na visão de Jordana Thadei, professora do Instituto Singularidades: a coleta de dados e o acompanhamento mais próximo pelo professor.
“O uso da tecnologia, se bem planejado e contextualizado, pode ser um importante meio de coleta de dados sobre o grupo de estudantes e sobre cada um deles individualmente, para personalizar o ensino, atuando sobre as demandas de conteúdo e de estratégias específicas de um grupo”, explica Jordana, que também é formadora do Cenpec (Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária).
Para ela, o ensino híbrido favorece que o professor acompanhe grupos menores de estudantes tanto para atividades quanto para autoavaliação. “Poder estar com grupos menores, principalmente em realidades de salas de aula cheias, é raro no contexto presencial tradicional, mas pode ser realizado no contexto do ensino híbrido (presencial ou adaptado para o remoto), já que a diversificação de atividades favorece ao professor escolher uma delas para acompanhar com diferentes grupos, um de cada vez”.
Um cuidado importante, porém, é o gerenciamento do tempo nas atividades, pois os estudantes dessa etapa estão aprendendo a fazer o seu planejamento. Essa necessidade se acentua no contexto atual, das aulas remotas, em que predominam as atividades realizadas no computador. “Cabe ao professor dimensionar as atividades de modo que o tempo para execução não seja insuficiente e nem excessivo”.
Fernando Trevisani considera que um dos aspectos positivos dos alunos dos anos iniciais em relação aos mais velhos e que favorece a aplicação da abordagem híbrida é a abertura para as atividades propostas pelos professores. “De maneira geral, eles acham interessante tudo o que o professor propõe e fazem com ânimo e dedicação”. Em contrapartida, a necessidade de mediação da família tende a ser maior, pois as crianças têm menos autonomia.
Por isso, é importante que os comandos das tarefas sejam simples e claros, a fim de que as crianças consigam realizá-las por conta própria. Esse processo, analisa Trevisani, pode favorecer o desenvolvimento da leitura e da escrita – embora, quando se fala de ensino híbrido, seja importante que os professores aceitem outras maneiras de os estudantes manifestarem o que aprenderam, além da escrita e da leitura. Ao se referir à Base Nacional Comum Curricular, o especialista também sugere outras possibilidades, como esquemas, cartazes e exposições orais.
As habilidades dos professores
Para colocar essa abordagem em prática, é essencial que os professores dominem os equipamentos e as linguagens, afirma Zilene Trovão, gestora do Centro Integrado Municipal de Educação, em Manaus (AM). “É preciso dominar a tecnologia, saber lidar com elas. Por isso, é importante investir nesse tipo de formação. É uma prioridade”, defende.
Ao lado do domínio tecnológico, o professor precisa estar alinhado com a visão de educação integral. Ela conta que na escola que dirige, a abordagem híbrida já era aplicada antes da pandemia, o que ajudou a assegurar o contato com os alunos e suas famílias e, também, a manter os vínculos com a escola e a aprendizagem, dentro do possível. A escola fica na região Leste 2 da capital do Amazonas, no limite entre as zonas urbana e rural, e atende a uma população oriunda do interior que vive em áreas de ocupação, com pouco acesso à infraestrutura urbana.
Jordana também concorda que o domínio tecnológico é uma chave importante. “O professor precisa conhecer os recursos tecnológicos e, principalmente, saber o que fazer com eles, de forma de forma significativa e contextualizada, integrada aos momentos sem tecnologia, estabelecendo um contínuo de aprendizagens”, detalha.
Outro ponto importante, na visão dela, é repensar os papeis de professor e de estudante, relativizando a ideia de quem ensina e quem aprende, abrindo espaço para que o estudante seja mais autônomo na construção do aprendizado e o professor, mais mediador.
Esse domínio, aponta Trevisani, pode representar uma vantagem para os professores que estão vivenciando o ensino remoto no contexto da pandemia, pois podem implementar com mais facilidade aulas que engajam mais os estudantes.